Poemas / Tiago Araújo

(gritar lobo)

continué regresando al lugar donde me habitué a gritar lobo hasta mucho después que dejaras de ir en mi auxilio. el invierno fue riguroso, las especies del miedo extintas con cobertores y alguna compañía —con una presencia retraída, sobrevivió apenas esa falta de talante adolescente que aprendemos a disimular por motivos profesionales. antiguos uniformes militares dibujados con colores primarios, listas con números de teléfono, mapas, todo lo que la memoria inmediata disparó un día al interior de pequeñas cajas, a la espera de catalogación, descripción, olvido. esta noche vengo a decirte que encontré el santo y seña escritos en el reverso de un boleto de autobús, pero no tu casa. ya nadie vive en las mismas calles pasados tantos años y la luz amarilla y sucia de una lámpara desnuda pende sobre un juego de cartas dejado a la mitad. en esa época sólo nos rendíamos a quien no nos quería vencer. sé que habría una lección por sacar de todo esto, aunque prefiero acusarte de falta de resistencia en un juego que uno de nosotros podría haber ganado, pero ambos perdemos.

 

lázaro

Dig yourself, Lazarus.
Nick Cave & The Bad Seeds

a esta altura ya sabes que nadie vendrá a salvarte.
pon el volumen de la música más alto y escarba
en la tierra blanda, lázaro, una puerta (cuarenta y siete) con salida
a la calle en que a esta hora nadie pasa para testimoniar
la forma más pobre, mi más recurrente forma de ilusionismo
en la mañana que sigue a una noche sin sueño y algunas muertes,
el péndulo de una bolsa de té suspendida por un hilo, como el día.

los monjes trapenses cavaban un poco de su sepultura
todos los días, para no olvidarse del fin cercano.
tu trayecto es inverso. debes ir
alargando la red de túneles, todos los medios de fuga
para recordarte que eres eterno
hasta probar lo contrario, como sugieren las teorías
empiristas y un buen amigo.

nadie me ve salir. sin multitudes o teatralidad, regreso
a esta plaza de invierno aún vacía, mientras la línea que separa el sol
naciente de la sombra vencida desciende por la fachada de los edificios,
para anunciar que me engañé en el camino, aunque,
aun así, no voy a volver atrás. muchas otras calles parten
de este camino perdido. reclinado sobre el mapa, divido los continentes
en las categorías burocráticas de un exilio profesional y
casi deseado.

la canción puede haber llegado al final, lázaro, pero no tu trabajo:
el arte de la resurrección insertado en la rutina diaria
hasta perder la eficacia, su reproducción técnica anunciada
por los modernos, por los que mueren junto a la frontera.

Versiones del portugués de Sergio Ernesto Ríos
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(gritar lobo)
continuei a regressar ao lugar onde me habituei a gritar lobo até muito depois de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do medo extintas com cobertores e alguma companhia — com uma presença recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio. nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.

lázaro
Dig yourself, Lazarus.
Nick Cave & The Bad Seeds

por esta altura já sabes que ninguém virá salvar-te. / põe o volume da música mais alto e escava / na terra macia, lázaro, uma porta (quarenta e sete) com saída / para a rua em que a esta hora ninguém passa para testemunhar / a forma mais pobre, a minha mais recorrente forma de ilusionismo / na manhã seguinte a uma noite sem sono e algumas mortes, / o pêndulo de uma saqueta de chá suspensa por um fio, como o dia. // os monges trapistas cavavam um pouco da sua sepultura / todos os dias, para não se esquecerem de um fim próximo. / o teu percurso é o inverso. tens de / ir alargando a rede de túneis, todos os meios de fuga / para te lembrares de que és eterno / até prova em contrário, como sugerem as teorias / empiristas e um bom amigo. // ninguém me vê sair. sem multidões ou teatralidade, regresso / a esta praça de inverno ainda vazia, enquanto a linha que separa o sol / nascente da sombra vencida desce pela fachada dos edifícios, / para anunciar que me enganei no caminho, mas / que, ainda assim, não vou voltar atrás. muitas outras ruas partem / deste caminho perdido. debruçado sobre o mapa, divido os continentes / nas categorias burocráticas de um exílio profissional e / quase desejado. // a canção pode ter chegado ao fim, lázaro, mas não o teu trabalho: / a arte da ressurreição inserida na rotina diária / até perder a eficácia, a sua reprodução técnica anunciada / pelos modernos, pelos que morrem junto à fronteira.

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