Fiera oculta / Vasco Gato

 

con Inés
para Rodrigo

I

Durante ese nado tuyo de fiera oculta
hay un papiro que se desdobla en mi boca
y nunca el futuro tuvo el sabor
de palabras tan sobradamente pronunciadas
familia   muchacho   ombligo
palabras con que se podría redactar
tan poca cosa
si no fuese la reinvención de tu llegada
inscrita en el mundo como piedra preciosa
que no es piedra
más bien un modo inalienable de brillar
con los brazos afuera.

Sé que tendrás que desplazarte
tímidamente
por estas calles y edificios que bostezan
con los nombres que les dieron
y que contigo tendrán una razón más fuerte
para conspirar en la larga trama
inanimada
donde se deciden los bichos
la que llamamos hombres
y que tan pobremente los han
habitado —te lo aseguro—
salvo una que otra carne
más obstinada en escaparse
de la bala común.

Para todo eso tendrás tiempo
aunque rápidamente te des cuenta
de que todo ya es tan tarde
yo mismo lamento el tiempo que esperé
y que no tendré para no presenciar
el incendio de tus ojos
el magro fruto que roerás por la noche
en algún barrio al pormenor
cuando el escaso amor que te dieron
fuese el alimento oportuno
de un amor más desarrollado
—extraño comercio, sí—
el tiempo que no tendré para lanzarnos
los dos al mar
en alguna noche desesperada
compartiendo la sal de todo dejar
ese gusto tan raro
tan sigilosamente próximo

Perdona la falta de gracia
el tono melancólico   la guerra
pero es que vivo en una época
que como muchas antes de ella
repitió los subsidios al asco
batió el corazón hasta llegar a su punto
para dejarse llevar al horno de la ambición
amasó los pequeños respiros

—sí, intersticiales, sutiles, difíciles—
sin los que un cuerpo es sólo
un estorbo para su propia muerte
¿lo ves?
un estorbo a su propia muerte

Porque esas finuras de que te hablo
son sin duda la única audacia
frente a la inevitable conflagración del espacio
—perdona una vez más, yo reformulo—
todo esto que aún no ves pero verás
todo esto que aún no tocas pero tocarás
no durará más que su propia
experiencia
y es ésa la única ley
y ése es el único himno
país tan deshabitado que festejas
cada desembarco como si te trajeran
el océano

Si la eternidad fuese un espejo
¿qué mostraría?
Esto   ahora   porque es aquí
que vive la luz y es éste el paisaje
que ningún dios puede borrar
sino a costa de su hambre
por eso no temas a ningún dios
ni a eternidad humana
tu carne es el único tesoro
—sélo mientras nadas—
digno de ser envuelto por la tiniebla

 

II
Sin saber aún los rasgos de tu rostro
sé que me reconoceré en ti
no fisonómicamente
sino en lo que es común a todos los cuerpos
esos primeros traspiés que la memoria no retiene
para que nada pueda ser comparado
con el júbilo de la encarnación
con la extrema vulnerabilidad
capaz de concentrar en sí
las apuestas circundantes

Pero me gustaría recibirte
en otro lugar
no en este buey tumbado
que tiene el nombre de veintiuno
peso muerto arrastrado de los cuernos
sólo para que no lo corrompan
las moscas
—aprenderás a amar también el trabajo alquímico
de las moscas
su centralidad en las salas
como si pudieran medir todo el espacio
y concluir que está en el medio—
otro lugar más congruente
con el uso de los dientes
con la urgencia de cuidar
con los locos pasos de los perros

Siento ya la fuerza de tus dedos sucintos
en torno a mi pulgar
el calor que prodigamos en cada gesto
en la inmensa consanguinidad
de las cosas vivas
no hay cómo huirle
vamos de la mano con lo que nos rodea
en ininterrumpida dedicatoria
los dados son lanzados y tomados
sin tocar la mesa
y la suerte sale conforme
la suerte que se diera
pues de todo se sabe sólo
la medida de su entrega

De ti cargaré hasta el fin
el anuncio cardiaco en pleno silencio
la ruina de una especie de soledad
que se creía inamovible
y que la fluidez de tus tambores
los cascos de tu nombre incógnito
deshicieron en un segundo
para en su lugar
instaurar una costura
que nos entrelaza de los pulmones
el número 3 echado
como un bote frente a las olas
el equipaje hacia el futuro

Te oigo nadar siempre en estos días míos
de náufrago puesto como estrella
sobre las aguas
y así estarás tú también
en tu elemento
los dos tal vez quietos
y ser ella quien nos abrevia a los dos
hacia su vientre alucinado
la mujer que traspuso conmigo
el umbral del cinismo
la angustia del salón bruñido
tu madre

Versión del portugués de Renato Sandoval Bacigalupo

 

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Fera oculta
com a Inês
para o Rodrigo
i
Durante essa tua natação de fera oculta / há um papiro que se desdobra na minha boca / e nunca o futuro teve o sabor / de palavras tão sobejamente pronunciadas / família       rapaz       umbigo / palavras com que se poderia redigir / tão pouca coisa / se não fosse a reinvenção da tua chegada / inscrita no mundo como pedra preciosa / que não é pedra / antes um modo inalienável de reluzir / pelos braços fora // Sei que haverás de te deslocar / timidamente / por estas ruas e prédios que bocejam / dos nomes que lhes deram / e que contigo terão uma razão mais forte / para conspirarem na longa malha / inanimada / em que se decidem os bichos / a que chamamos homens / e que tão pobremente os têm / habitado — garanto-te — / à excepção de uma ou outra carne / mais obstinada em escapar / à bala comum // Para tudo isso terás tempo / ainda que rapidamente te dês conta / de que tudo é já tão tarde / eu próprio lamento o tempo que esperei / e que não terei para testemunhar / o incêndio dos teus olhos / o fruto magro que hás-de roer noite dentro / nalgum bairro de pormenor / quando o escasso amor que te deram / for o alimento oportuno / de um amor mais desenvolto / — estranho comércio, sim — / o tempo que não terei para nos lançarmos / os dois ao mar / nalguma noite desesperada / partilhando o sal de tudo largar / esse gosto tão raro / tão sigilosamente próximo // Perdoa a falta de graça / o tom melancólico      a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / para se levar ao forno da ambição / deu uma sova às pequenas respirações / — sim, intersticiais, subtis, difíceis — / sem as quais um corpo é apenas / um estorvo à sua própria morte / percebes isso? / um estorvo à sua própria morte // Porque essas finuras de que te falo / são sem dúvida a única ousadia / frente à inevitável conflagração do espaço / — perdoa uma vez mais, eu reformulo — / tudo isto que ainda não vês mas verás / tudo isto que ainda não tocas mas tocarás / não durará mais do que a sua própria / experiência / e é essa a única lei / e é esse o único hino / país tão desabitado que festejas / cada desembarque como se te trouxessem / o oceano // Se a eternidade fosse um espelho / o que mostraria? / Isto       agora       porque é aquí / que vive a luz e é esta a paisagem / que nenhum deus pode apagar / senão à custa da sua fome / não receies por isso deus nenhum / nem eternidade nenhuma / a tua carne é o único tesouro / — sei-o enquanto nadas — / digno de ser embrulhado pela treva

ii
Sem saber ainda os traços do teu rosto / sei que me reconhecerei em ti / não fisionomicamente / mas no que é comum a todos os corpos / esses tropeços primeiros que a memória não segura / para que nada possa ser comparado / com o júbilo da encarnação / com a extrema vulnerabilidade / capaz de concentrar em si / as apostas circundantes // Gostaria no entanto de te receber / num outro lugar / não neste boi tombado / que dá pelo nome de vinte e um / peso morto arrastado pelos cornos / apenas para que não o devassem / as moscas / — aprenderás a amar também o trabalho alquímico / das moscas / a sua centralidade nas salas / como se pudessem medir todo o espaço / e concluir que é no meio — / um outro lugar mais consentâneo / com o uso dos dentes / com a urgência de cuidar / com as loucas passadas dos cães // Sinto já a força dos teus dedos sucintos / em torno do meu polegar / o calor que esbanjamos em cada gesto / na imensa consanguinidade / das coisas vivas / não há como fugir-lhe / vamos de mãos dadas com o que nos rodeia / em ininterrupta dedicatória / os dados são lançados e apanhados / sem tocar a mesa / e a sorte sai conforme / a sorte que se der / pois de tudo se sabe apenas / a medida da sua entrega // De ti carregarei até ao fim / o anúncio cardíaco em pleno silêncio / a ruína de uma espécie de solidão / que se julgava inamovível / e que a correnteza dos teus tambores / os cascos do teu nome incógnito / esboroaram num segundo / para no seu lugar / instaurarem uma costura / que nos entrança pelos pulmões / o número 3 deitado / como barca frente às vagas / a equipagem para o futuro // Ouço-te nadar sempre nestes meus dias / de náufrago posto em estrela / sobre as águas / e assim estarás tu também / no teu elemento / os dois talvez quietos / e ser ela quem nos encurta aos dois / para o seu ventre alucinado / a mulher que transpôs comigo /  o limiar do cinismo / a angústia do salão espelhado / a tua mãe

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